A empatia entre mulheres
negras renasce através da relação com seus cabelos. A transição capilar cria
laços para além da estética
Por: Juliana Gonçalves
A relação com os cabelos marca experiências
individuais e coletivas para as mulheres negras. Pergunte a sua amiga, prima,
vizinha. Todas as mulheres negras têm histórias sobre o cabelo — essa moldura
do rosto que revela quem são e, o mais importante, quem elas querem ser. O
cabelo é a porta de entrada para começarem a se entender enquanto negras e
perceberem que não estão sozinhas nessa busca por uma identidade que foi
sequestrada pelo bullying da infância, por todas as vezes que
tiveram seu cabelo comparado à palha de aço, por cada "cabelo ruim"
que ouviram.
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Era comum, em um passado nada distante, mulheres
negras se reunirem num domingo à noite em torno do fogão para alisar os cabelos
com o pente de ferro. Esses eram momentos de encontro, mas também de dor
compartilhada. O que mais parecia um instrumento de tortura, literalmente
marcou a fogo a vida de muitas mulheres negras. Eu mesma, a repórter, lembro
que o cheiro do cabelo da minha mãe sendo queimado percorreu muito da minha
infância.
Voltar ao cabelo natural é um processo dolorido de
retorno às raízes africanas, mas esse caminho cria um vínculo pautado no
pertencimento à comunidade negra. Amar seu cabelo natural é enegrecer,
tornar-se negra de fato.
“Em uma sociedade racista como a brasileira, uma
cabeleira black power é um ato político”
A psiquiatra e escritora Neusa Santos, em 1983,
escreveu o primeiro livro sobre os impactos do racismo na psique das
pessoas: Tornar-se negro (ed. Graal) é
referência sobre as dificuldade emocionais de pessoas negras que negam a
própria imagem por indução racista de seus algozes históricos. Ter a
consciência desse processo seria um passo essencial para romper esse ciclo de
opressão. A conscientização, segundo a autora, segue por uma via individual,
mas se concretiza no coletivo, nas experiências coletivas comuns.
Foi ao se irmanar com Partido dos Panteras
Negras que a advogada, escritora e ativista Kathleen Cleaver entendeu
que usar o cabelo natural estava abrindo a possibilidade de uma nova
consciência entre o povo negro nos Estados Unidos, no final da década de 60. Em
um vídeo disponível no youtube, Cleaver conta sobre
como a comunidade negra estava se libertando de padrões culturais brancos e
assumindo seus próprios cabelos. "Por tantos anos, nos disseram que apenas
pessoas brancas eram atraentes, que somente cabelos lisos, olhos claros e pele
clara eram bonitos. Então as mulheres negras faziam de tudo – alisar seus
cabelos, clarear a pele – para se parecerem o máximo possível com mulheres
brancas. Isso mudou porque as pessoas negras estão conscientes", afirma.
“Por tantos anos, nos disseram que apenas pessoas
brancas eram atraentes, que somente cabelos lisos, olhos claros e pele clara
eram bonitos”
Em uma sociedade racista, como é o caso da
brasileira, uma cabeleira black power é um ato político. Travar essa batalha em
comum cria em mulheres negras um sentimento de empatia. O retorno à negritude
por meio do processo conhecido como transição capilar é cheio
de percalços, mas, sobretudo, as mulheres criam constantemente espaços de
acolhimento, de escuta, onde dividem táticas de resistência em busca do cabelo
natural.
Abaixo, Nátaly Neri, Gabi
Oliveira e Neomisia Silvestre, mulheres negras que
dialogam com outras mulheres sobre cabelos, dividem suas experiências e
pensamentos sobre ser crespa e ser livre.
N
Nátaly Neri: "Mulheres negras aprenderam a amar seus cabelos crespos ao observar outras mulheres negras amando e as incentivando a amar seus crespos"Crédito: Arquivo pessoa
Nátaly Neri, youtuber do canal Afro e afins:
"Eu me 'iniciei' no processo
de consciência política por meio do cabelo. Na adolescência, fiz um curso sobre
tranças e aprendi um pouco mais sobre mim, sobre meus ancestrais, me
identifiquei com aquelas narrativas e parei de alisar o cabelo definitivamente.
O cabelo é uma das grandes questões para a mulher negra. Falar
para uma garota negra aceitar seu cabelo natural não perpassa só os
conhecimentos técnicos para ela fazer isso (como os produtos, o big
chop, como chamamos o grande corte para tirar a química, e a
transição), é necessária também a compreensão dos motivos pelos quais ela
sempre odiou o seu cabelo — aí, inevitavelmente, passamos por toda a discussão
sobre marginalização e inferiorização de corpos negros no Brasil.
Quando vejo esse movimento de mulheres que ao longo desses anos
partilharam suas expertises, se tornaram verdadeiras conhecedoras de
composições químicas e até realizaram inúmeras alquimias para superar a falta
de produtos para seus cabelos, percebo como a colaboração feminina é fundamental
para superarmos os padrões racistas e sexistas que são imposto sobre nós.
Mulheres negras aprenderam a amar seus cabelos crespos ao observar outras
mulheres negras amando e as incentivando a amar seus crespos."
Gabi Oliveira: "Percebi o quão absurda era aquela negação extrema da minha própria estética"Crédito: Arquivo pessoa
Gabi Oliveira, youtuber do canal DePretas:
"Comecei a usar químicas para transformação capilar com 4
anos, então passei a vida sem saber como era o meu cabelo. Na adolescência, com
todas as mudanças dessa fase, tudo piorou. Eu era uma menina negra de pele
escura e a única forma de tentar um leve embranquecimento era por meio dos
apliques. Foi em um desses processos, que por volta dos 20 anos, decidi
entrar em transição. Percebi o quão absurda era aquela negação extrema da minha
própria estética.
Muitas mulheres se entendem negras após o processo de transição
capilar. É um tema que nos une e nos fortalece como comunidade ao
incentivar o apoio mútuo, que, com o tempo, extrapola o assunto cabelo. A
estética é o 'assunto isca' do meu canal. Mulheres que às vezes estão
procurando apenas sobre procedimentos com o cabelo, chegam e abrem os olhos
para outras questões que influenciam em muito a relação delas com o espelho.
Se hoje assuntos como colorismo, representatividade, racismo etc.
têm mais alcance, isso se dá muito pelo fato de várias mulheres terem iniciado
o processo de pensar a sua própria estética e, a partir disso, começarem a
lutar contra os padrões impostos."
Neomisia Silvestre: "Como é gostoso estar na rua e encontrar outra preta de cabelo natural na rua. Rola uma empatia imediata"
Crédito: Tomás Arthuzzi/divulgação
Neomisia Silvestre, da Marcha do Orgulho Crespo:
"Por muito tempo o meu cabelo foi um lugar de prisão. Ele
sempre estava molhado para baixar o volume, amarrado… O processo de transição
não é fácil, passa por entender por que você quis manter o cabelo liso, os
padrões europeus de beleza…
Mas assumir seu cabelo natural não deve ser um outro lugar de
prisão, mas de libertação. Por esse motivo já tive luzes, tranças, cabelos
vermelhos e cheguei a raspar tudo. Nada de ditadura do cacho perfeito! Nesses
três anos que atuo na produção da Marcha do Orgulho Crespo, eu percebi como
esse processo ocorre para algumas mulheres, pois a marcha é também esse lugar
de encontro e escuta sobre o assunto.
Há uma diversidade entre as pessoas negras, as histórias são muito
individuais, embora entrelaçadas. O ponto em comum é justamente esse: o
encontro com você mesmo. Como é gostoso estar na rua e encontrar outra preta de
cabelo natural na rua. Rola uma empatia imediata. Um sorriso tímido. Os cabelos
geram uma conexão entre uma negra e outra. É lindo. Mas, para mim, o mais importante
é para onde a mulher leva essa discussão, o que vem depois da transição. Não é
só cabelo, é perceber que esse cabelo é parte de um corpo negro
resistente."
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